As turmas de aceleração tinham um perfil diferenciado. Eram adolescentes com defasagem idade/série por diversos motivos: uns nunca haviam estudado e outros haviam evadido da escola devido repetências constantes.
Todos tinham em comum a baixa autoestima, era visível a falta de afeto, de atenção dispensada a eles e mostravam-se bastante agressivos com coisas mínimas, parecendo estar sempre em atitude de defesa. A ausência da família no acompanhamento escolar também era um fato relevante da defasagem e do comportamento agitado dos alunos.
Duda era um dos alunos desta turma e foi selecionado a partir de uma rápida avaliação de leitura e escrita através de uma adaptação da fábula “A Cigarra e a Formiga”. O simples fato de ser escolhido para realizar a “prova” que os permitiria fazer parte da turma já foi motivo de alegria para eles. Necessitavam estar iniciados na alfabetização e a participação na turma os permitiria, conforme rendimento, a eliminação de um ou dois anos, reduzindo a defasagem escolar. Nosso horário era integral, 7:30 h até 16:30 h e eu era a única professora deles. Tínhamos um longo trajeto já que o “Projeto de Aceleração de Aprendizagem” era composto de seis livros que abordavam todas as disciplinas e era dividido em projetos com diversas culminâncias.
Como é visível, ficávamos juntos nove horas por dia e todas as refeições também eram feitas comigo: café da manhã, almoço, lanche e jantar. A única hora que ficavam sem minha presença era durante as aulas de Educação Física.
Considero impossível ficar tanto tempo junto e não aprender a amá-los, conhecer suas particularidades, ficar triste com suas aflições e feliz com suas conquistas.
Duda tinha 12 anos, era um menino muito carinhoso, brincalhão demais, com facilidade de aprendizagem, participativo, bastante agitado e, ocasionalmente, muito agressivo.
Durante o ano letivo todos se tornaram muito amigos. Orgulhavam-se de sua sala, da disciplina, do exemplo que sempre queriam dar aos alunos menores. Cumpridores de seus deveres, passaram a reivindicar seus direitos até mesmo na direção da Unidade Escolar. Colaboravam enfeitando a escola para as festas e faziam questão de ir à escola em dia de Conselho de Classe ou de Centro de Estudos para ajudar na arrumação e até mesmo na limpeza. É bem verdade que também havia o interesse em almoçar antes de ir embora!!!
Para o final do ano letivo preparamos a culminância de um dos projetos: “Circo” que seria apresentado para alunos da Educação Infantil.
Alguns números de Circo seriam apresentados na quadra e Duda queria ser o palhaço. Nos divertíamos muito durante os ensaios, ele era muito engraçado!
As meninas ocuparam-se em fazer flores de crepom para enfeitar pirulitos que seriam distribuídos durante a apresentação. Balas e sacos de pipoca também receberam decorações especiais. Convites foram elaborados por eles e distribuídos. Roupas de kami foram confeccionadas por nós, bem como a lona improvisada e um painel de fundo.
Quando tudo estava pronto ficamos tristes com a notícia de que por um esquecimento da coordenadora, a Educação Infantil não estaria presente. Ela havia marcado a formatura deles para o mesmo dia e em horário diferente. Em cima da hora, convidamos as outras turmas de séries iniciais.
A apresentação foi um sucesso! Todos trabalharam e Duda, nosso palhaço foi um show!!!
Duda, além de engraçado tinha facilidade de aprendizagem e tornara-se um dos melhores alunos. Já lia com entonação, interpretava, dominava as quatro operações, adorava desafios matemáticos e estava pronto para novos caminhos e conhecimentos.
Duda, como outros, foi para outra escola onde deveria, sozinho, vencer as novas etapas.
Inicialmente passava na escola para nos visitar depois desapareceu. Mais de um ano depois tive notícias dele através de colegas: havia deixado a escola, estava trabalhando junto ao tráfico na comunidade em que residia.
Esta notícia deixa o professor muito triste. Desejamos sempre o melhor para eles e nossa vitória, certamente é vê-los vencer.
Pouco tempo depois recebi a visita de Duda. Ele veio pedir ajuda. Queria deixar esta vida. Era fogueteiro no tráfico para sustentar seu vício. Não queria mais isso, ele queria ser palhaço e implorava nossa colaboração.
Uma professora da escola entrou em contato na hora com alguém da escola de circo que nos forneceu o e-mail da direção para que eu enviasse a história de Duda para eles e disse que poderíamos levá-lo para conhecer. Enviei o e-mail e a professora que havia ajudado prontificou-se a agendar a visita e levá-lo até lá. Ficamos muito felizes quando a direção da ESCOLA DE CIRCO, gentilmente nos enviou uma carta com todas as explicações e datas para inscrição. Independente do período, ele iria visitar a escola.
Ficamos a espera de Duda para marcarmos com ele o dia da visita.
Uma semana, duas, passaram-se semanas e Duda não retornou. A chance de ajudá-lo fugiu de nossas mãos.
Um dia, da varanda de meu apartamento ouvi uma música muito alta vinda de uma rádio comunitária... o trecho que o trouxe na hora ao meu pensamento foi “...Duda era uma criança, ele queria ser palhaço, ele só queria brincar...” Pensei logo em ser uma música para ele, o retratava. Será que ele havia feito a música?
Passaram-se uns quinze dias e uma outra ex-aluna da turma veio me ver com a notícia... Duda havia morrido. Durante uma incursão da polícia à comunidade ele fora pego soltando os fogos de aviso para traficantes e, baleado, morreu no local.
Ali terminou o espetáculo, os sonhos e pesadelos.
Infelizmente, dia a dia a Educação sofre perdas irreparáveis. O educador, ser solitário, exerce variadas funções: professor, psicólogo, assistente social, psiquiatra, mãe, pai, família. Acumula todas as dificuldades da profissão e o emocional em que é envolvido, não é valorizado pela sociedade e, geralmente, é responsabilizado por todos os fracassos.
A cura nunca se dará somente com projetos educacionais. Há a necessidade de projetos sociais, de reconhecimento de um povo ainda mais massacrado que se concentra nas favelas. De oportunidades e salários dignos para todos. De educação que resgate valores. De profissionais envolvidos e engajados em transformação.
“A pedagogia tem de ser forjada com ele (o oprimido) e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará."
(FREIRE, Paulo. Pedadgogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.)
(FREIRE, Paulo. Pedadgogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.)